14/10/2025

Sem gravação de assembleia, ata não tem valor jurídico, diz advogado

Fonte: Consultor Jurídico

A assembleia da Liga do Futebol Brasileiro (Libra) iniciada em maio e concluída
em agosto deste ano pode ser anulada, no entender do especialista em Direito
Associativo, parecerista e árbitro Pablo Renteria, ouvido pela revista eletrônica
Consultor Jurídico. O motivo é a ausência da gravação da reunião solicitada
pelo Flamengo em setembro e ainda não disponibilizada.
“Se foi utilizada videoconferência, a assembleia deveria ter sido gravada. Se não
houve gravação, a assembleia foi realizada de forma irregular e pode então ser
invalidada”, afirma o professor de Direito Civil do Departamento de Direito da
PUC-Rio e sócio-fundador do Renteria Advogados.
O Flamengo aguarda desde o dia 25 de setembro a resposta a uma notificação
extrajudicial feita à Libra para que a liga apresente a gravação integral da
Assembleia Geral Extraordinária deste ano. Falando em “alteração maliciosa”
do que foi falado na reunião, o clube carioca deseja a nulidade da assembleia.
O clube alega que o teor do que foi tratado não corresponde ao que foi
publicado na ata enviada no dia 17 de setembro. “O documento desvia-se do
dever de registrar com precisão os eventos, na medida em que omite fatos
essenciais e constrói, de forma contrária à realidade, uma narrativa que beneficia
uma interpretação específica dos acontecimentos, prejudicando um único clube
— o Flamengo”, afirma o texto da notificação, a que a ConJur teve acesso (veja
aqui).
Espelho quebrado
Segundo o Flamengo, a gravação é a única forma de dirimir a controvérsia sobre
a exatidão da ata. “Não à toa, o próprio parágrafo único do artigo 17 do
Estatuto prevê a gravação das assembleias realizadas por videoconferência,
como ocorreu na AGE citada”, argumenta o clube no pedido.
Procurada pela ConJur, a Libra diz que entregará documentos seguindo ritos
judiciais. “Uma vez que a Libra foi acionada na Justiça e o processo corre em
segredo de justiça — conforme requerido pelo próprio Flamengo —, a Libra
entende que a apresentação de documentos, agora, deve observar o rito judicial
e supervisão dos magistrados”, responde André Sica, diretor Jurídico da Libra.
Atas e editais divergentes
Outro ponto levantado pelo Flamengo é que os editais de convocação das duas
reuniões para a mesma assembleia apresentam ordens do dia diferentes, o que
configuraria alteração ilícita da pauta.
No edital de 6 de maio, o primeiro item é a “deliberação sobre os parâmetros a
serem utilizados pela Libra para a mensuração da audiência aferida em
decorrência do contrato Globo”. Como não houve decisão unânime (exigência
para alterações do estatuto) sobre a fórmula do rateio, a assembleia foi suspensa
e depois retomada no dia 26 de agosto.
Mas, no edital de convocação da segunda reunião, emitido em 14 de agosto, a
ordem do dia é diferente: “Votação sobre a proposta de alteração do critério de
mensuração de audiência apresentado pelo Flamengo, em decorrência do
Contrato Globo” — o que, segundo o clube, inverte os papeis para usar a
exigência de unanimidade, agora contra o Flamengo.
O clube afirma que não fez proposta alguma. Seu representante na assembleia,
Marcelo Campos Pinto, disse à ConJur que, na reunião de agosto, pediu um
aparte e afirmou: “Não estamos discutindo nenhuma proposta do Flamengo,
mas sim a continuação das deliberações da reunião de maio.” O trecho não
consta da ata entregue em 17 de setembro pela Libra.
André Sica diz que todos os clubes presentes à AGE de agosto tiveram
oportunidade de expor suas motivações e o tempo de fala devidamente
observados. “O Flamengo, especificamente, inclusive apresentou voto escrito,
sem apontar e/ou realizar qualquer objeção ao Edital de Convocação, seja
verbalmente, seja por escrito.”
Sobre a diferença nos dois editais de convocação, Sica argumenta que a
assembleia de maio foi solicitada pelo Flamengo para que fossem discutidos os
critérios de divisão de audiência, e o edital de convocação foi feito nesse sentido.
“Durante essa assembleia, o Flamengo solicitou a revisão dos critérios adotados
e solicitou a alteração. A Assembleia foi suspensa, justamente, para que o
Flamengo pudesse dialogar com os clubes antes da votação e tentasse
convencê-los de votar a favor da alteração do estatuto e adoção de seu cenário”,
afirma o advogado.
“Portanto, o Edital de convocação de agosto é um edital de retomada de AGE
suspensa previamente, e consequentemente reflete o que estava pendente de
resolução. A pendência era, justamente, a proposta de alteração do estatuto pelo
Flamengo para utilização do cenário 4 para cálculo de audiência”, diz Sica.
Para Renteria, que, entre 2008 e 2018, atuou como superintendente de
processos sancionadores e diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM),
a ata da assembleia da Libra corre o risco de ser anulada. “A ata de uma
assembleia pode ser impugnada se não refletir de forma fidedigna os principais
fatos ocorridos durante a reunião”, diz. Segundo ele, a situação é ainda mais
grave considerando as contradições decorrentes da alteração dos editais de
convocação.
Renteria explica que não é normal a alteração das ordens do dia de editais de
duas reuniões para a mesma assembleia, com o mesmo propósito. E aponta
uma contradição entre a convocação inicial e a da sua retomada. “Inicialmente,
a assembleia foi convocada para aprovar os critérios a serem utilizados na
aferição da audiência, o que, logicamente, supõe que esses parâmetros ainda não
haviam sido aprovados”, questiona.
“Quando é convocada a retomada da assembleia, incluiu-se na ordem do dia a
apreciação da proposta do Flamengo de alteração do critério de mensuração da
audiência, o que, por sua vez, supõe que os critérios haviam sido previamente
definidos. Mas, se assembleia havia sido suspensa, como foi possível aprovar os
critérios? Onde está a ata que aprova esses critérios? Essa contradição indica
muito provavelmente a existência de um vício no que foi deliberado após a
retomada da assembleia”, explica.
Decisão incompleta
O centro da discussão entre Flamengo e Libra é o rateio dos 30% do valor dos
direitos televisivos a receber pelo contrato com a TV Globo, especificamente
sobre a audiência. A Libra alega que esse rateio foi aprovado por unanimidade
(exigência do estatuto) na assembleia de setembro. Já o Flamengo afirma que a
decisão de setembro não se consumou, pois as porcentagens referentes aos
diferentes tipos de mídia (TV aberta, streaming e pay per view) não haviam sido
definidos e aparecem em branco na referida ata.
Reportagem publicada neste sábado (11/10) no UOL dá conta de que, no final
de 2024, o advogado Flavio Zveiter, um dos fundadores da Libra, mas à época
já vice-presidente da CBF, pediu uma reunião sobre o assunto com a cúpula da
Liga.
No encontro, ele avisou Julio Casares (presidente da Libra e do São Paulo) e o
então secretário-geral Raul Guerrero (CEO do Bahia) que havia uma lacuna no
critério de audiência. Zveiter teria explicado que, se essa questão não fosse
sanada, isso poderia, posteriormente, gerar o questionamento judicial do
estatuto.
“A prova de que isso não estava resolvido é a convocação da assembleia de
maio, onde a Libra apresenta seis cenários possíveis para esse rateio, todos eles
lesivos ao Flamengo”, afirma Campos Pinto.
Sem unanimidade, a reunião foi interrompida para ser continuada três meses
depois, mas, em julho, a Globo pagou à Libra a primeira parcela de audiência,
rateada de acordo com o cenário 1. Em 25 de setembro, às vésperas do repasse
da segunda parcela, de R$ 83 milhões, o Flamengo conseguiu liminar
suspendendo os pagamentos da emissora à Libra.
O Flamengo reclama, ainda, que outra exigência fundamental do estatuto da
Libra estaria sendo desrespeitada com o rateio utilizado. Pela regra de transição,
nenhum dos 17 integrantes da Libra pode receber menos do que a receita
apurada em 2023 corrigida pelo IPCA. Pelo cenário adotado pela Libra, o
Flamengo receberia menos do que em 2023.